A escuta em tempos de cansaço.

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A escuta em tempos de cansaço.
A escuta em tempos de cansaço.

Em tempos de sociedade do cansaço é possível escutar o outro?

Escutar nos tempos atuais é um desafio. Primeiro porque há um desejo enorme de exposição, de fala, em segundo, para que haja escuta, ou, mais precisamente, parar e se por face a face, pressupõe a figura do outro como ser constituinte de meu ser. Mas isso parece estar cada vez mais distante em uma sociedade que o filósofo coreano Byung Chul Han nomeou de Sociedade do cansaço, ou seja, uma sociedade hiper individualizada, sem a figura do outro, e que portanto, indivíduos encontram-se isolados e cansados de si mesmos. Este é o novo cansaço contemporâneo. Cansaço de estar o tempo todo consigo.

Este avanço significativo da individualização destrói por completo aquilo que já dissemos anteriormente: a figura do outro. Mas, por quê isso acontece?

Há algo curioso que acontece nesta sociedade e que é preciso ser colocado aqui em questão. Há uma espécie de excesso de positividade em grande medida das nossas ações promovidas o tempo inteiro.

O velho bordão “faça você mesmo”, ou, “você pode, você faz”, nos coloca diante de uma competição e valorização incessante da busca de algo que nem sabemos o que exatamente é. Se perguntarmos para grande parte das pessoas o porque elas fazem o fazem, muitas certamente não saberão nos fornecer respostas convincentes. E isto é um sinal de atomização da vida, ou seja, uma vida dominada e sobretudo, sozinha.

Esta valorização é promovida pelo neoliberalismo e suas nuances (propaganda, principalmente) que promovem este estilo de vida cada vez mais ausente de alteridade. Quando, por exemplo, olhamos face a face diante do outro, e não conseguimos estabelecer um diálogo, trocar ideias, é sinal que algo está errado neste modo que vivemos.

Mas não é somente isso.

Dentro deste espectro há mais um elemento que se torna um sinal claro dos tempos que vivemos.

As palavras têm história, têm seus posicionamentos políticos e, portanto, não são neutras. A palavra multitarefas tem sido usada recentemente para mostrar aquela pessoa que consegue fazer várias coisas ao mesmo tempo. Tal conceito revela em si a chamada lógica do desempenho, em que subjetividades vão sendo moduladas, reformuladas e até em alguns casos, destruídas.

Mas se analisarmos esta mesma sociedade, com seu modo de produção, as exigências constantes de produção e de lucro, o homem tem de se dinamizar, fazer várias coisas ao mesmo tempo. Com isso, a vida se torna meramente uma lista de tarefas. Mas, a vida é mais do que uma lista de tarefas!

Mas que sociedade seria esta? Quais suas características que faz surgir o imperativo do desempenho e reprodução como valores fundamentais da vida na pólis?

Estamos em uma sociedade em que a filósofa e professora da Universidade Federal de São Paulo, Olgária Matos, nomeia de distópica, ou seja, “aquela em que as instituições que medeiam as relações entre as pessoas — como a escola, a igreja e a família — não mais seriam socializadoras, no sentido em que existem elementos realistas nas utopias e elementos utópicos no realismo. Os valores que dominariam seriam aqueles como a desconfiança, a deslealdade e a injustiça”.

Este tipo de sociedade, além de se colocar como realista, pelo menos é o que dizem os que se nomeiam assim, produz uma série de medos que resultam em ressentimentos, desconfiança e angústias. Não há mais lugar para o outro, aquele sujeito singular que em certa medida me constitui como humano. Neste complexo cenário de destruição, os valores que dominariam seriam a desconfiança, deslealdade e injustiça, conclui a filósofa.

Um grande exemplo
acerca do que foi dito anteriormente pode ser visto nas redes sociais. Descartamos o outro de maneira rápida, por meio de um bloqueio, ou simplesmente o excluímos da vida, mas há mais nestas relações. Escolho o outro para conviver mediante meus gostos, caso pense diferente, não o aceito. Neste mesmo assunto, mas em uma outra direção, Leandro Konder fornece uma bela reflexão sobre a questão da alteridade: “a minha identidade depende de minha capacidade de reconhecer o que nós – eu e os outros – temos em comum e o que nos distingue”. O que isso quer dizer? “A convivência com a alteridade precisa de uma identidade amadurecida, flexível, e simultaneamente firme”, conclui Konder.

Para finalizar, coloco a cerne de reflexão e que é o tema deste texto: é possível a escuta nestes tempos de cansaço?

Referências:
Byung Chul Han: Sociedade do cansaço
Leandro Konder. As artes da palavra.
Olgária Matos: Medo, desespero e angústia: um retrato das sociedades distópicas. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/medo-desespero-e-angustia-um-retrato-das-atuais-sociedades-distopicas/#:~:text=Assimumasociedadedistpicaseria,eelementosutpicosnorealismo.

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Marco Aurélio De Passos Rodrigues
Escritor nascido em agosto de 1981, na cidade de São Paulo, conhecida por sua violência e crimes de amor. Dedica-se há alguns anos ao ensino de filosofia, literatura, história e etc. De sua vida, o que pode se dizer é que escreveu e publicou os seguintes livros: Descaso por acaso (editora Multifoco, 2015), Restos da decadência: pequenas histórias de todos os tempos - Volume I: Filosofia comum e formas de vida (ensaio filosófico -editora companhia dos autores, 2017) e Arquitetura do golpe, (Editora Multifoco 2019), Ódio à política, ódio ao pensar Clube dos autores (2021) Linguagem e ideologia: entre o signo e o marxismo. Clube dos autores (2022) e Educação, Cidadania e realidade Nacional. Clube dos autores (2022). Além disso, é graduado em filosofia, pedagogia (Universidade Metodista de São Paulo) Mestre em filosofia (Universidade Federal de São Paulo) e Doutorado em Filosofia e Ciências da Educação (Emil Brunner World University). Atualmente é professor na Prefeitura Municipal de Santo André e mantém um canal chamado Polêmicas de nosso tempo.