No início da década de 1990, o premiado filme “O silêncio dos inocentes”, inspirado na obra literária de Thomas Harris, marcou época entre os clássicos da cine-dramaturgia. O seu aspecto de terror explorado pelo enredo de canibalismo dá um tom assustador e, com certeza, esse título nos causa impacto quando – para além dele – concebemos a ideia de que muitos hoje não têm a oportunidade de expressar o que pensam sobre seus pontos de vista tão peculiares à situação de dor de cada um. A necessidade de expressar o seu olhar acerca dos fatos no mundo é inerente ao ser humano; externar por meio de palavras é, antes de tudo, um ato natural.
Nestes tempos hodiernos, a busca por voz, no meio de uma multidão de vozes que clamam em um deserto de sombras, parece ser maior. E, diante dessa polifonia discursiva, quando todos querem ter razão, muitas pessoas ainda mendigam a vez de serem ouvidas. São tantos canais, tantas redes, tantos e quantos meios de comunicação, e – apesar disso – ninguém se deixa ouvir em alto e bom som, porque os interesses são divergentes e quem fala mais alto permanece ganhando no grito. Assim mesmo: manda mais quem pode mais. O silêncio fica para “os inocentes”.
Na conjuntura da ambiência acadêmica, tão pluridiversificada ao longo dos últimos anos, esperar que haja espaço para a voz que lhe seja divergente é, paradoxalmente, desafiador e passível de ameaças excludentes. Os vieses polarizadores, que não são de hoje, acirraram os ânimos de quem – sob a paixão – opta pelo grito a despeito de quase sempre a opinião da maioria tenha que ser vista e adotada como lei. Nisso, o silêncio fica para os “inocentes”.
Desde muito tempo, sob o trilema da Revolução Francesa de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, sabe-se que os dois últimos dependem da existência do primeiro. A partir dessa verdade, as concepções de conquistar direitos igualitários entre aqueles que vivem sob condições tão desiguais parecem mais uma daquelas utopias cuja perspectiva é muito distante, margeando a impossibilidade. Enquanto isso, por mais que se apregoe a necessidade urgente de um convívio fraternal, o silêncio fica para os “inocentes”.
As vozes que querem vezes, quase sempre são as mesmas que um dia, no passado, foram silenciadas, mas não se permitiram ficar assim. Negros que foram criados mudos não se deixaram mais emudecer; mulheres que pariram engolindo a dor do parto hoje partem p’ra luta, não obstante tenha havido tantos lutos. Crianças que foram objetos de prazer, e não tiveram o prazer de protagonizar suas próprias histórias também desejam exercer seu direito de dizer sim e de dizer não, mas até quando serão tantos silenciando com tantas frustradas oportunidades de dizer, de contar e de extrair seus espinhos na carne? Por que o silêncio continua com os inocentes?
Quando a vez for da voz, que não haja silêncio. Quando a oportunidade for da luz, que não prevaleça a escuridão. Quando for para ser, que não se viva só para ter. Quando puder haver liberdade, não nos percamos em nossos próprios grilhões. A voz que silencia não precisa ser a marca da inocência; é preciso ser para dizer o que falta, o que sobra, e isso é postura de quem está presente, de quem entende o passado e luta por um futuro com a consciência de que a liberdade de expressão norteia-se pela certeza de que – quando o grito é a arma dos insensatos – o silêncio não deve ser o discurso dos inocentes.